1,8 mil professores recebem gratificação para compensar violência diária dentro e fora de escolas

Professores sofrem assaltos constantes no caminho para escolas, e ameaças de alunos armados dentro delas. O Município garante um extra de R$ 582,91 a quem trabalha em zonas perigosas. O Estado, nem isso


A marca de bala na parede já revela o cenário em uma escola de Fortaleza. Alunos assistem a aulas armados de revólver, disparam ameaças se expulsos de sala, “tocam o terror” quando são contrariados, seja dentro ou fora da instituição. Até no direito de ir e vir dos outros assegurado na Constituição Federal eles interferem. E, no meio disso tudo, estão os profissionais do ensino. A rotina de professor da rede pública tem sido uma luta constante contra o medo e a vontade de desistir da profissão.
“Já fui assaltada oito vezes no caminho para a escola”, desabafa a professora de História de uma escola municipal de Fortaleza, que pede para não ser identificada. O caminho até a instituição, localizada na Grande Messejana, é inseguro tanto para quem faz o percurso de carro como de ônibus.
A segunda opção é ainda pior, já que a parada dos coletivos fica distante da escola. Há quatro anos, ela segue diariamente para o trabalho, onde atua das 7h às 17h. Os quatro quarteirões que precisa andar são os que mais dão medo. “Os bandidos se reúnem nas praças, bem em frente ao colégio, e esperam a gente sair para nos assaltar. Já mataram várias pessoas ali, inclusive um aluno que era da escola”. O caso, ocorrido há cerca de um ano, gerou comoção, mas a professora optou por não comentar detalhes do assunto. “Foi em um final de semana, a gente chegou na segunda-feira e disseram. Foi assassinado na frente da própria escola onde estudava”, lamenta.
Para passar por situações de risco, trabalhando em regiões com alta criminalidade, os professores municipais recebem uma bonificação chamada “Gratificação de Incentivo à Lotação”, instituída em 2014. O valor de R$ 582,91 por mês representa 26,9% do piso salarial (R$ 2.163,73) de um educador de 40 horas. Ao todo, 1.828 professores de 72 instituições dispostas em 29 bairros de Fortaleza estão incluídos na lista. O Conjunto Palmeiras possui o maior número de escolas beneficiadas: 10.
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação (SME), o benefício foi implementado após pacto consensual entre a Secretaria e o Sindicato da categoria e tem o objetivo de incentivar os profissionais a exercerem as atividades nas escolas com difícil acesso. “Não é suficiente. Além de ter sido assaltada, já presenciei muitas ocorrências. Algumas vezes, deu tempo de correr para dentro da escola, outras não. E o pior: os alunos também passam por isso. Mas é o jeito”, conta. Nas oito vezes em que foi assaltada, ela teve celulares, bolsas e dinheiro levados. “Os bandidos sabem que trabalhamos ali, não tem nem como fazermos nada, porque no dia seguinte vamos ter que voltar para a escola”.
Ameaças
O mesmo acontece com a professora municipal de História, Geografia e Ensino Religioso, no Bairro Dias Macedo, que também prefere manter o nome em sigilo. Brigas, desrespeito e vandalismo não se aprendem na escola, mas é realidade dentro das próprias instituições. Ela trabalha dois turnos completos (tarde e noite) diariamente e diz já ter sido ameaçada por estudantes, que intimidam funcionários de todos os escalões.
Dentro de sala de aula, o confronto explode quando o aprendiz é contrariado. “Um aluno do 6º ano quis me dar um murro no rosto. Outra vez, um se armou com a faca do refeitório e quis ferir a coordenadora. Teve outro caso em que eu estava dando aula, quando – de repente – a gangue do Lagamar pulou o muro e saiu de sala em sala atrás de um inimigo”.
E histórias não faltam. Ex-presidiários, traficantes e assaltantes são alunos da professora de 47 anos. Nas mochilas, revólveres, facas e estiletes dividem espaço com os livros. “Tem para todo gosto”, diz. As constantes ameaças e humilhações pelas quais passa, no entanto, não fazem com que a pedagoga tenha receio de dar notas baixas, se for preciso. Até porque, segundo disse, em geral, eles não se importam com o desempenho no colégio. “Os que atuam nesse submundo frequentam a escola apenas por imposição dos pais ou por não terem o que fazer, pois suas casas não oferecem as mínimas condições para acolhê-los durante o dia, ou até por seus parceiros estarem lá, para ‘tocarem o terror’ o dia inteiro”.
“Um aluno do 6º ano quis me dar um murro no rosto. Outra vez, um se armou com a faca do refeitório e quis ferir a coordenadora” (Professora municipal)
Mesmo tendo passado por diversas situações de risco, a educadora não recebe a Gratificação de Incentivo à Lotação. É que a escola onde atua não está incluída na lista da SME das instituições com locais de difícil acesso. De acordo com ela, problemas psicológicos são recorrentes na categoria. No fim de 2014, foi diagnosticada com Síndrome do Pânico e teve de passar por tratamento, mas ainda restam sequelas. “Me sinto desprotegida, abandonada, manipulada, desvalorizada. Todo dia penso em desistir da profissão”, desabafa.
Sem gratificação
Uma professora de Língua Portuguesa, cujo nome também não será revelado, de uma escola estadual do Bairro Pirambu, sofreu uma tentativa de assalto que seria cometido por um aluno seu. Ao perceber que a vítima seria ela, o estudante voltou atrás e desistiu de praticar o crime.
“Eu estava na parada de ônibus sozinha, quando percebi que dois homens vinham de bicicleta na minha direção. Na medida em que se aproximavam, meu nervosismo aumentava. Reduziram a velocidade, um deles saltou em direção a mim e já ia puxar algo da cintura, quando o que ficou na bicicleta o chamou, fazendo com que desistisse da empreitada. Ele me reconheceu e eu o reconheci: havia sido meu aluno”, relata aliviada.
Em outro caso, também presenciou um estudante perguntar a um professor se ele tinha ‘peito de aço’, em um tom claro de ameaça, depois de ser retirado de sala por mal comportamento. Apesar de tentar manter um bom nível de relacionamento com os alunos, a profissional já teve o carro arranhado e os pneus furados. Outra vez, soube que um estudante foi praticar assaltos após a aula e acabou preso. “Infelizmente, boa parte dos colegas tem alguma história de provocação, humilhação ou intimidação para contar”.
Para completar o drama, os professores da rede estadual do Ceará não recebem a gratificação, até então exclusiva para os professores municipais. Eles se arriscam nas escolas e não são beneficiados com nenhum tipo de remuneração. Segundo a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc), não há previsão legal para o recebimento do benefício. “Hoje, nós, professores temos que lidar com a violência dentro e fora da escola, não há lugar seguro. Entrego todos os dias minha vida nas mãos de Deus; porque, se até para a polícia a situação está difícil, imagine para o cidadão comum”.
O magistério sempre foi um sonho para ela, mas o desejo perdeu força em detrimento ao cansaço de lidar com agressões e humilhações diárias. Não existe formação que prepare um profissional para isso. “A constante desvalorização pela qual passamos, os baixos salários, agravados por essa sensação de insegurança e impotência, têm me feito pensar em seguir outra profissão”.
Tiros e ataques
O ataque de criminosos a caminho do colégio é rotineiro e assombra toda a comunidade escolar. A violência parece massacrar os funcionários, gerando cicatrizes em todo o sistema… E até nas paredes dos colégios. A reportagem do Tribuna do Ceará visitou duas escolas municipais localizadas no Conjunto Palmeiras, listadas pela Secretaria Municipal de Educação como locais de difícil acesso. Uma delas ainda tinha resquícios de uma invasão ocorrida em 2013. Marcas de bala na parede permanecem como lembrança de algo que os professores insistem em esquecer.
“Na gestão passada, houve invasão e saqueamento no colégio. Todo final de semana, ela era saqueada. Aqui temos até um buraco de bala na parede”, conta uma mestre, que pede para não identificar nem informar o nome da instituição. Na época, ladrões pularam o muro da escola, renderam o único vigilante que estava no local, quebraram cadeiras, reviraram salas e levaram o celular do funcionário e câmeras de segurança.
“Me sinto desprotegida, abandonada, manipulada, desvalorizada. Todo dia penso em desistir da profissão”. (Professora municipal)
Para os 630 alunos, apenas um vigia faz a segurança por turno, tendo de acumular ainda a função de porteiro. “De vez em quando passam agentes da Guarda Municipal ou do Ronda do Quarteirão. Mas é bem de vez em quando mesmo”, relata.
Diante do cenário, o então diretor da escola saiu do cargo, e houve chamada pública para outra gestão. “Já teve tiroteio na rua de trás da escola, por causa da disputa do tráfico de drogas. Os professores que estavam saindo, voltaram correndo para cá. Ah, e muitos já foram assaltados”, acrescenta. Na escola, que recebe alunos do Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental, um deles – de apenas 9 anos – foi flagrado com uma arma branca, uma faca. Muitas das vezes, os próprios colegas informam à coordenação. “Eles avisam baixinho, e aí chamamos o aluno para não constranger na frente dos outros, vemos a mochila e retiramos a arma. Também chamamos os pais para conversar”.

Em outra instituição do bairro, a reportagem também enfrentou resistência dos professores em falar sobre a violência. A vice-diretora abriu as portas do colégio, mas pediu sigilo tanto do seu nome quanto do nome da escola. Lá, estudantes do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental assistem às aulas. Segundo disse, porém, o problema maior está nas turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), cujo expediente termina às 21h30.
“A gente sabe que uns são chefões do tráfico, eles próprios contam isso. A gente pede que eles ajudem, que não tragam drogas para a escola. Até porque, se trouxer, não tem uma pessoa que possa ficar vigiando o tempo todo”, explica. Câmeras de circuito interno estão instaladas no colégio, mas não há um profissional lotado para assistir às filmagens.
O próprio vigilante, o único do turno da tarde, reclama do número insuficiente de profissionais de segurança na escola, que tem 1.030 alunos. Para ele, seria necessário um vigia e um porteiro 24 horas por dia. “Aqui fora era direto assalto. Os bandidos já passavam correndo depois de praticar o crime. Ano passado, bem cedo, umas 6h30, uma professora chegou de carro e já tinha um homem aqui dentro. Ele roubou o carro da professora e fugiu. Não tem condições”.
Duas Fortalezas
A diretora-executiva do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação do Ceará (Sindiute/CE), Gardênia Baima, é contrária ao baixo valor da gratificação paga aos professores municipais e também ao número de escolas beneficiadas. Segundo afirmou, todas as escolas sofrem com o problema e não apenas 72 instituições.
“Não tem preço que pague uma vida. Todas as escolas municipais têm a mesma característica e oferecem perigo na ida e volta dos professores. Todos os servidores estão vulneráveis, e alguns recebem e outros não. O problema é que vivemos em duas ‘Fortalezas’. Uma concentra renda, tem praças bem cuidadas, hospitais, e avenidas asfaltadas. A outra é onde estão as nossas escolas, com água empoçada, postos sem condições de funcionamento. É uma Fortaleza esquecida. Se a comunidade vai bem, está organizada, tem programas sociais, consequentemente, a escola pode ter uma outra perspectiva”.


Para o presidente do Sindicato dos Professores e Servidores do Ceará (Apeoc), Anízio Melo, é difícil demarcar escolas que sofram problemas em relação à violência interna ou externa. “Não tem como você tabular isso. É um ponto de discussão que temos, constantemente, na rede estadual”.
Segundo Anízio, são necessárias políticas preventivas que possam garantir atividades esportivas e culturais no perímetro das escolas. “Não podemos entender que o problema será resolvido colocando mais policiamento ou dando gratificação a A, B ou C. É preciso combater a política da violência investindo em educação, cultura e esporte. A escola deve ter estrutura para abrir as portas à comunidade, porque a comunidade é o verdadeiro exército contra a violência. Isso precisa ser tratado com mais seriedade”. O vencimento inicial de um educador estadual que trabalhe 40 horas semanais é de R$ 2.840,17, que é a soma do piso salarial mais duas gratificações fixas.
Vigilância nas escolas
Diante do cenário de violência nas escolas, a SME informou que as unidades escolares contam com monitores de acesso durante o dia, e segurança terceirizada (vigilantes) durante a noite. “A Prefeitura de Fortaleza implantou também o programa ‘Segurança nas Escolas’, a partir de parceria com a Secretaria de Segurança Cidadã”, afirma a assessoria, por meio de nota.
Segundo a SME, as câmeras de monitoramento eletrônico já foram instaladas em cerca de 150 unidades, e foram disponibilizadas 20 viaturas próprias, para o uso de 170 guardas municipais com treinamento especial para atuação nas escolas.
Já a Seduc disse que são contratadas empresas para realizar a vigilância nas escolas e não há revista de alunos. Explicou ainda que a pauta da prevenção da violência na educação escolar deve ter olhar multifacetado por parte dos gestores e da própria sociedade. Por meio de nota, a Seduc informou que “busca garantir o direito dos alunos a uma boa escolarização, com oportunidades de iniciação no mundo do trabalho, desenvolvimento de habilidades de pesquisa científica, artístico culturais e esportivas”, finaliza.
Leia nesta terça-feira (8):
– Bairros com maior número de escolas com gratificação por insegurança estão em zonas não apenas violentas, mas principalmente vulneráveis socialmente. Veja em detalhes quais e onde estão essas escolas.

Via Tribuna do Ceará

Postar um comentário

Os comentários são de inteira responsabilidade do autor, e não expressam necessariamente a opinião dos editores do blogger

Postagem Anterior Próxima Postagem