Centenas de pessoas vão à cidade de Cruz, no Norte do Ceará, desde agosto devido a dois supostos milagres associados a um menino de 7 anos. A criança tida como curandeira, no entanto, não é o único exemplo de personalidade que desperta o interesse e a fé de quem sofre com enfermidades.
A situação do menino é acompanhada pela Diocese de Sobral, já que o menino frequentava a catequese de iniciação à vida cristã. Desde março deste ano, filas de pessoas em busca de milagres começaram a se formar na casa da criança, quando a notícia de que ele estaria "curando" doentes se espalhou pela região.
Para o padre Abimael Nascimento, professor de Teologia na Faculdade Católica de Fortaleza (FCF), fenômenos religiosos de supostas curas e milagres atraem muitas pessoas porque elas “procuram soluções rápidas e imediatas para o sofrimento que vivem”. Por isso, a Igreja não ignora esse movimento, mas o avalia “com muita prudência”.
“É preciso verificar as raízes, como se passa, e para isso estabelece comissões com peritos especialistas para, caso necessário e entenda ser viável, estudar e fazer o reconhecimento. É um processo longo, mas é importante cuidar das pessoas, sobretudo para não caírem em situações com que venham a se decepcionar gravemente”, explica.
Conheça algumas histórias de pessoas procuradas pela população para encontrar alívio de doenças com base em reportagens analisadas pelo Núcleo de Pesquisa do Diário do Nordeste.
A CURANDEIRA DE JUAZEIRO
Em dezembro de 1998, Maria do Socorro Carvalho, de 20 anos, também atendia pacientes em casa, em Juazeiro do Norte. Eles a apelidaram de “Corrinha”.
“Vestida de branco, com um crucifixo no pescoço, ela pega na mão do paciente, olha para o relógio, manda que a pessoa respire, enquanto anota num papel timbrado com o seu nome as doenças do paciente examinado”, descreve a reportagem.
Ela tinha auxílio da mãe, Maria das Graças, num “expediente” que durava das 8h ao fim da tarde. As consultas terminavam com uma reza, ou a indicação de alguns remédios, geralmente naturais.
Para realizar o trabalho, Corrinha cobrava R$10. Porém, quem não podia pagar também ganhava isenção. “A minha missão é fazer caridade”, declarou à época. Além de cidades do Cariri, ela também atendia gente de Pernambuco.
Segundo a mãe, Corrinha recebeu uma aparição de Nossa Senhora, aos 12 anos, revelando que ela passaria seis anos de sofrimento - profecia cumprida em hospitais diante de uma doença não compreendida pelos médicos.
Aos 18, Nossa Senhora teria reaparecido e orientado a garota a rezar três rosários por dia, vestir roupa branca ou azul e fazer caridade. Pouco depois, começaram a surgir os primeiros pacientes.
AGRICULTOR EM MILAGRES
Já em 2010, as páginas contavam a história do agricultor Antônio Aristides dos Santos, mais conhecido como “Antônio Rezador”, que montou um “consultório” no Sítio Tabocas, na cidade de Milagres, onde atendia a cerca de 100 pessoas por dia, a partir das 6h da manhã.
As orações eram realizadas dentro de uma capela cheia de imagens de santos, com o piso coberto por um tapete. Os pacientes só podiam entrar descalços. O rezador cumpria o mesmo protocolo: uma camisa branca, um terço na mão e meias nos pés.
No ritual, Antônio tocava o terço num copo com água que, em seguida, era passado nos pés de Jesus Crucificado e na imagem de Nossa Senhora das Graças. Depois, ele rezava passando o terço em todo o corpo do paciente. Por fim, dava um pouco da água para a pessoa beber.
“É Deus quem tem o poder da cura, eu sou apenas um instrumento”, disse Antônio.
O rezador, católico praticante, garantia que já curou gente até pelo telefone. Recebendo aposentadoria, o único pagamento que Antônio recebia eram santos e terços que depois eram repassados para outros pacientes.
PRESIDIÁRIO REZADOR
João Teodoro da Silva, conhecido como João Rezador, guarda uma das histórias mais incomuns em relação à cura pela fé. Isso porque o homem exercia as práticas das rezas mesmo durante a pena de 21 anos por um crime de homicídio.
O curandeiro vivia numa pequena casa de taipa ao lado do Instituto Penal Agrícola de Santana do Cariri. “João é uma espécie de curandeiro. O povo da redondeza acredita que suas rezas curam toda doença”, detalhou a reportagem publicada em agosto de 1987.
A rotina do presidiário também era curiosa devido a companhia conhecida do seu cachorro Sorturno, por colher mel e caçar mesmo durante o período em reclusão.
João Rezador era tido como o curandeiro com maior credibilidade entre a comunidade no pé da serra. Naquele ano, o homem vivenciava a expectativa de liberdade com o final da pena.
"Não vejo a hora de voltar para o sertão do Meu Quixadá, onde nasci e vivi minha infância e adolescência", declarou na época. Um primo de João ofereceu uma casa para que o rezador pudesse ficar até o final da vida.
REZA CONTRA MAU-OLHADO
Em Juazeiro do Norte, a religiosidade é compartilhada com mais intensidade na população no que vários rezadores despontam. Na Rua do Horto, que dá acesso à estátua do Padre Cícero, um dos mais conhecidos era Luís José dos Santos.
Luís costumava andar pelas imediações da Capela do Socorro e na época das romarias ou na missa tradicional do dia 20 de cada mês, em homenagem ao Padre Cícero, ele ocupava o nicho para rezar nas pessoas.
Os principais pedidos de fé eram por cura de “quebrante” ou “mau-olhado” que afetava as crianças com fastio, entristecidas, acometidas de diarréias, por exemplo. O rezador, aos 84 anos, disse que não cobrava dinheiro para atender as pessoas.
“Não se pode vender a palavra de Deus", frisou Luís José ao Diário do Nordeste em 2004. Contudo, o homem disse que não rejeitava as gorjetas oferecidas pela população.
O rezador nasceu em Belo Jardim, em Pernambuco, mas chegou em Juazeiro do Norte por volta da década de 1940 atraído pela fé. Luís foi participar de uma romaria e jamais retornou para a cidade natal.
O que é um milagre?
A Igreja Católica reconhece que algumas pessoas alcançam uma intimidade e comunhão com Deus num nível em que podem intermediar ações divinas. Mas isso acontece, principalmente, após a morte das personalidades que ganham títulos de servos, beatos e santos.
“A Igreja reconhece a santidade quando reconhece que esses batizados morreram em estado de graça e hoje vivem em comunhão com Deus, a ponto de poderem, de maneira mais próxima, recorrerem a Deus por aqueles que estão sofrendo na Terra”, reforça.
Sempre diante desses sinais, a Igreja estabelece comissões de estudo para verificar se há contradição com o que a Igreja ensina. Se há contradição, a Igreja olha com suspeita. Se há concórdia, a Igreja acolhe com muita generosidade e propõe uma difusão desta devoçãoABIMAEL NASCIMENTOProfessor de Teologia
Existem critérios rígidos para avaliar, por exemplo, se um caso pode ser considerado um milagre oficialmente para o catolicismo. Esses pontos foram relembrados pela Diocese de Sobral em comunicado sobre o caso do menino de cruz.
A análise é baseada em 7 tópicos do documento "De servorum beatificatione et beatorum canonizatione", do livro IV, capítulo VII, 2-1734), do Papa Bento XVI. Confira:
- A doença deve ter características de gravidade, com prognóstico negativo
- O diagnóstico real da doença deve ser certo e preciso
- A doença deve ser apenas orgânica
- Nenhum tratamento pode ter favorecido o processo de cicatrização
- A cura deve ser repentina, inesperada e instantânea
- O retorno ao normal deve ser completo (e sem convalescença)
- A cura deve ser duradoura (sem recaídas)