A Universidade Federal de Pelotas (UFPel) estuda ampliar a oferta de cursos de graduação para pessoas cadastradas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou beneficiárias de projetos de assentamentos. Na última sexta-feira (23), representantes da instituição de ensino reuniram-se com lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) para falar sobre a criação de turmas especiais de Medicina para essa população.
Se implementada, esta seria a primeira formação de médicos exclusiva para assentados em todo o Brasil. Não há, contudo, prazo para que a abertura da turma especial ocorra – a discussão ainda é inicial e depende de avaliação da Faculdade de Medicina, Psicologia e Terapia Ocupacional (Famed), que abrigaria a modalidade.
Segundo a reitora da federal, Isabela Andrade, a iniciativa é uma resposta da instituição às preocupações sociais com a saúde e o acesso a cuidados médicos adequados nas áreas rurais e entre as comunidades agrárias, que enfrentam desafios socioeconômicos e, historicamente, foram marginalizadas do sistema tradicional de educação superior pública.
— Essa iniciativa representa um instrumento de emancipação. Ao contrário do que se costuma questionar em relação a iniciativas do poder público de apoio a grupos sociais considerados vulneráveis, ela não se caracteriza como uma ação exclusivamente assistencialista. Pelo contrário, seu objetivo é oferecer a possibilidade de emancipação individual com um comprometimento social — pontua a reitora.
A parceria da UFPel com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não é novidade – a graduação em Medicina Veterinária já é oferecida, lá, há 12 anos, dentro do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). A universidade é a única do país a dar a assentados a formação como médicos veterinários e recebe alunos de todos os Estados. Desde a criação, 139 profissionais concluíram os estudos.
A experiência tem sido considerada positiva e, recentemente, foi coroada com uma nota máxima concedida em avaliação do Ministério da Educação (MEC). Quando a ideia surgiu, entretanto, passou por resistência de estudantes, professores e entidades de classe. Uma batalha judicial adiou em quatro anos o início das aulas, ocorrido em 2011.
— A experiência tem demonstrado que a escolha foi correta. Para aquela minoria da sociedade que costuma fazer julgamentos desprovidos de qualquer base real ou, ainda, premidos por preconceitos menores, este recente resultado é uma demonstração de que as oportunidades devem ser dadas a todas e todos — defende Isabela, salientando que o rendimento acadêmico e o comprometimento dos alunos vindos de assentamentos “é algo que encanta e motiva”.
Atualmente, estão em andamento seis turmas de nível superior vinculadas ao Pronera no RS, contemplando 266 estudantes. Além dos 112 alunos de Medicina Veterinária da UFPel, há 98 cursando bacharelado em Agronomia, no Campus Erechim da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e também no Instituto Educar, em Pontão. Estudando licenciatura em História são 20 pessoas, em Erechim e também no Ipe-Campo/Iterra no assentamento Viamão/Filhos de Sepé em Viamão, institutos que fazem parte da parceria. Além disso, 36 estudantes têm aulas de Tecnologia em Agropecuária no Campus Frederico Westphalen da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI).
Cremers contesta
O início do debate sobre a criação de uma turma especial de Medicina para a população da reforma agrária aconteceu na sexta-feira. Já na terça (27), o Conselho Regional de Medicina (Cremers) protocolou ofício junto à reitoria, para que sejam dados esclarecimentos sobre a iniciativa em um prazo de 48 horas. Ainda não houve retorno.
Em nota, a entidade citou a Constituição e ressaltou que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, sem segregar cidadãos em grupos de qualquer espécie”. Carlos Sparta, presidente do órgão de classe, destaca que quase 3 mil médicos são formados anualmente no Rio Grande do Sul, o que já tornaria desnecessária a criação de novas turmas. A preocupação é ainda maior no caso do curso proposto pela UFPel, que, em seu entendimento, beneficiaria uma pequena parcela da população.
— Temos resoluções vigentes no país sobre como deve ser o ingresso nos cursos de Medicina. Não podemos beneficiar um grupo. Estamos muito preocupados, porque o médico é formado para atender em postos do sul ao norte do Brasil. Logo, não tem como formar um médico para atender uma área ou uma região específica — destaca Sparta.
Para o presidente do conselho, programas como o Médicos pelo Brasil e o Mais Médicos já trazem soluções para descentralizar a atuação dos profissionais e evitar que falte atendimento em locais mais isolados, como as áreas rurais.
— Estimulamos que brasileiros ou estrangeiros com diploma revalidado se inscrevam nesses programas, que têm um sucesso muito grande. Por isso, não é necessário haver turmas específicas para atender a diferentes populações — avalia o médico.
A reitora da UFPel discorda da visão do Cremers sobre a iniciativa causar uma segregação, discurso que, em seu entendimento, vai na contramão da história:
— Já vivemos em uma sociedade segregada em grupos: alguns que se beneficiam da atual estrutura e outros que sofrem com esta estrutura. O que se impõe às universidades públicas é escolher o lado no qual desejam ficar e trabalhar. Se deseja trabalhar pela emancipação dos trabalhadores e mais humildes, ou se deseja apenas manter-se servil às elites econômicas e culturais.
Isabela recorda, ainda, que a Constituição garante às universidades autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, o que lhes permite definir as medidas que entenda adequadas para sua organização e regramento e, especialmente, "para construir mecanismos de inclusão e desenvolver iniciativas voltadas aos diversos públicos de nossa sociedade”.
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